marcas de classe
aos quatro anos, eu me viciei em charadas. essa espécie de enigma infantil, construído em forma de pergunta bem humorada, desafiava a minha curiosidade de maneira sagaz, colocando lógica e humor como elementos que, décadas mais tarde, constituiriam meu tipo de inteligência.
era 1995 e eu vivia sob os cuidados de uma tia-avó. a casa dela, na periferia de diadema, vivia cheia de familiares que chegavam de garanhuns para passar temporadas em são paulo, ou de parentes que já moravam em são paulo, mas muito longe de nós. era o caso de tio antônio, que vivia em ferraz de vasconcelos. outra periferia, mas bem distante do abc.
tio antônio teve a mesma vida que todo mundo da família teve. viveu – e vive, hoje tem seus mais de 90 anos – acumulando marcas em seu corpo: cicatrizes deixadas pelos fatos da vida, dores que sobram e funcionalidades que faltam. tio antônio só tinha dois dentes na boca.
em uma tarde com tio antônio de visita, sentado à mesa do café, todos nós comendo bolachinhas 7 capa e pão doce comprado à porta da casa de um vendedor que tinha uma brasília velha, eu tive uma ideia: desafiar os adultos com charadas.
comecei: o que é, o que é? faça chuva ou faça sol, vivem sempre molhadinhas? ninguém sabia o que era, mas isso não era problema para mim porque eu me divertia dando dicas que levassem as pessoas até a resposta. a dica, nesse caso, parecia óbvia na minha cabeça de criança: o tio antônio só tem dois na boca.
a mesa foi ao delírio da risada. não me lembro se tio antônio riu com seus dois dentes ou se se sentiu triste com a minha crueldade infantil.
quando meus dentes de leite caíram, uma sucessão de fatos levaram os definitivos aos caos: a mandíbula pequena demais, num rosto estreito demais para dentes muito grandes; a carne esponjosa no nariz que me levava às noites dormidas de boca aberta; a boca aberta que gerava pouca pressão e criou um céu da boca que mais parece um abismo de tão profundo; tiveram também algumas decisões neglicenciadas; o pouco acesso à informação e a constante decisão difícil que é ter que escolher entre arrumar os dentes de uma criança ou passar mais uma semana jogando sinuca e bebendo num bar.
meus dentes cresceram comigo, apinhados num lugar que não cabiam direito. foram rasgando minhas gengivas e encontrando maneiras de morderem bananas, bolachas recheadas e mistos quentes. foram fazendo o que dava para ser feito, acumulando restos nos cantos desse apinhamento e me envergonhando todos os dias.
aos 14 anos, eu tinha vergonha de sorrir – mesmo com todos os dentes na boca. as câmeras digitais começaram a se proliferar e eu tinha vergonha de mostrar meus dentes nas fotos. sorria com os lábios, mas na maioria das vezes não tinha muita vontade de sorrir mesmo. eu me sentia feia com todos esses dentes que não me cabiam na boca e, às vezes, pensava que podia doar alguns ao tio antônio e resolver dois problemas com uma solução só.
mais tarde, meses antes de entrar na universidade, fui fazer uma radiografia panorâmica para começar o tratamento com aparelho ortodôntico. era um dia chuvoso de outubro e, além da radiografia, os dentistas tiravam uma foto 3x4 para identificar a pessoa dona da mandíbula capturada em raio-x. eu visivelmente estou triste na foto que tiraram, mas é uma das últimas em que consigo ver essa tristeza envergonhada. depois de colocar o aparelho, em quase todas as fotos seguintes, estou sorrindo.
lendo “mudar: método", do edouard louis, me identifiquei com muitos sentimentos que ele descreve, mas talvez as três coisas mais marcantes sejam um pai adicto, a vergonha pelos dentes e a vontade de fugir do passado. ele traduz essa fuga como seu processo de mudança e/ou metamorfose. eu prefiro chamar de “aburguesamento”.
para quem se aburguesa – ou “ascende socialmente” –, assim como eu, é curioso notar que mesmo mudando boa parte da vida – as referências, casa, cidade, nível escolar, roupas e aparência –, as marcas no corpo continuam denunciando o local de origem.
são marcadores de classe.
“meus complexos de classe e de origem, que no resto do tempo eu conseguia superar, desabaram sobre mim; sabia que em outros contextos eu podia representar um papel, fingir que era outra pessoa ou até mentir sobre meu passado, mas aquela mulher que caminhava na minha frente para me atender em outra sala no fim do corredor ia examinar meu corpo, e meu corpo era o elemento da minha pessoa mais difícil de controlar, aquele que não podia mentir, a materialização concreta do meu passado, meu passado feito sangue, carne, e osso.” – edouard louis.
meu tio antônio tinha dois dentes na boca, hoje ele usa prótese. assim como meu avô usou e meu pai ainda usa. minha avó perdeu um dedo na metalúrgica, mas não existe prótese para dedo, então ela vive sem. meu sogro acumula cicatrizes de uma vida de hérnias e outros problemas derivados do trabalho braçal.
eu extraí um dente e os que sobraram foram endireitados na medida do possível, mas ainda guardo o molde da minha arcada dentária antes do tratamento com aparelho. quando vim morar em são paulo, pensei em jogar fora, mas alguma coisa me impediu e resolvi colocar o molde como um bibelô na minha mesa de trabalho.
talvez pelo medo de perder meu marcador de classe, talvez pelo medo de perder meu lugar de origem porque, veja, e se perco esse lugar de vista? de onde eu fujo? eu não posso esquecer de continuar meu plano de fuga.
mark fisher, no seu livro “realismo capitalista”, sugere que os transtornos de saúde mental que vivemos hoje são originados pelo capitalismo tardio, pelo neoliberalismo e suas consequências – que passam, principalmente, pela desigualdade social e o aprofundamento da pobreza e da miséria.
eu concordo e me pergunto: será que não são esses os novos marcadores de classe? as novas marcas no corpo agora são mentais?
temos todos os dentes, usamos aparelhos ortodônticos, não perdemos nossos dedos nas máquinas das fábricas, não empunhamos mais os arados, mas acumulamos uma lista de outras consequências: ansiedade, burnout, depressão, remédio controlado, abuso de substâncias, transtornos alimentares.
marcas às vezes mais invisíveis, às vezes mais visíveis, mas ainda assim marcas da nossa classe.
Na boca da gente, faltam dentes.
Na boca do caixa, sobram notas.
No bolso da gente, pouco sobra.
Mas no bolso daquela gente -sempre- os nossos dentes.
Leio chorando, sem condições! Socorro!