não dá para fazer parte de tudo
a primeira vez que me senti rejeitada foi com coisa de 7 ou 8 anos, pela professora celina, que dava aula na escola estadual de primeiro grau profª mércia artimos maron, onde eu estudava. eram os anos 90 e naquela época o mundo aceitava coisas inaceitáveis com muita naturalidade: era um tempo em que as pessoas fumavam até nos aviões e que professoras da 1ª ou 2ª série não se preocupavam em esconder as suas preferências sobre este ou aquele aluno.
professora celina gostava da bruna, uma menina de cabelos lisos e longos, que sentava na primeira carteira da segunda fileira em frente à mesa da professora. era para a bruna que eram entregues os calhamaços das folhas sulfites recém tiradas dos mimeógrafos e ainda molhadas – e entorpecentes, que delícia – para que fossem distribuídas pela sala, aos mais de 40 alunos.
eu era uma boa aluna, talvez figurasse entre as 5 melhores alunas da classe – considerando que nessa fase escolar a gente não aprende complexidades matemáticas, eu me saia muito bem – então, não entendia como era possível que a professora não contasse comigo para distribuir as narcóticas folhas de sulfite das atividades em sala.
bruna era o que eu comecei a intitular de "queridinha da professora", e eu morria de inveja da relação dela com celina. como o dramaturgo da vida é um safado, anos mais tarde, quando eu tinha 11 anos e estava na 5ª série, bruna começou a beijar o menino que eu gostava, durante as aulas de fanfarra. eu queria morrer, mas o que eu fiz foi mais valente que isso: entrei em uma briga com ela, dei alguns puxões de cabelo, mas, basicamente apanhei.
a segunda vez que me senti rejeitada foi na adolescência. claro que também foi na adolescência que me senti rejeitada pela terceira, quarta, quinta e incontáveis vezes posteriores. por motivos diferentes, por pessoas diversas e em intensidades que variaram muito, mas senti o mesmo gostinho amargo. consigo lembrar das situações clássicas: nenhum garoto se interessava por mim até os 15 anos, eu morava em um bairro de classe média alta e estudava em uma escola estadual de gente realmente pobre, consequentemente, não tinha uma turma que se identificasse 100% comigo, não era convidada para as festas de debutante em buffets e nem para os bailinhos na quebrada.
eu morria de inveja das meninas do bairro de classe média, com suas casas divididas em cômodos – a minha casa, na época, não tinha divisórias entre os ambientes, mas esse é assunto para outra conversa – e seus amigos, conversando alto na frente do portão de casa, com seus patins, patinetes e bicicletas coloridonas e novinhas. na mesma intensidade, eu sentia inveja das meninas da escola e seus acontecimentos no final de semana: as festas e churrascos na vizinhança delas, as primeiras experiências afetivas.
sem conseguir ser parte de nada, eu queria ser parte de tudo.
uso a palavra "conseguir" com absoluta consciência. eu queria conseguir estar nesses grupos, fazer parte deles, ser aceita, bem recepcionada. ser a queridinha de quem quer que fosse. Esse sentimento me colocou, anos mais tarde, em lugares que eu poderia não ter me enfiado, mas também me obrigou a aprender a viver uma solitude forçosa, me apoiando nos símbolos que eram importantes para mim.
eu criei uma narrativa particular. enquanto ouvia o barulho dos adolescentes brincando sem me convidar, repetia para mim mesma quem eu queria ser quando crescesse. dentro de mim, eu sabia que a adolescência parecia eterna, mas ia passar. então, eu me ocupava em fazer listas na agenda, escrevendo os sonhos de quem eu queria ser: uma adulta moderna, interessante, com boas referências de música, leitora, com roupas legais e malucas. passava tardes e mais tardes enfileirando e organizando mentalmente os símbolos que eram importantes pra mim, construindo um universo a salvo em que eu me virava sozinha.
é curioso pensar que eu focava meu desejo em quem eu queria ser, porque todo o resto feito depois foi basicamente uma série de escolhas baseadas nesse universo particular que eu queria construir e que, no fim, me fizeram realizar o sonho de ser a adulta que eu esperava ser. que bom.
não é coisa de adolescente, é coisa de ser humano.
para ser o mais genérica possível, eu vou dizer que a última vez que me senti rejeitada foi recentemente. olhando daqui, da vida adulta em seu auge de capacidade física-mental, a impressão que eu tenho é que o sentimento de rejeição adquiriu novos traços e agora é engatilhado por situações que fazem parte de um cotidiano recheado de compromissos, trabalhos e relações familiares. observar as patricinhas do meu bairro, com o desejo secreto de fazer parte do grupo, se tornou consumir os posts e reposts de novas pessoas.
uma coisa que, definitivamente, não muda é o gostinho amargo, que me faz repetir à exaustão: por que não faço parte? sou feia? sou burra? sou chata? será que tem alguma coisa errada aqui comigo, meu deus? justo agora que eu conquistei todos os passos para ser a adulta que eu queria ser, logo agora que completei o álbum de figurinha de todos os simbolismos.
não dá para fazer parte de tudo.
hoje eu entendo que não dá para fazer parte de todos os grupos. não dá. mesmo. falta tempo, falta disposição, nossas prioridades mudam, a gente muda e, na maioria dos casos, falta desejo.
é curioso pensar que, ao mesmo tempo em que eu gostaria de estar inclusa, eu gostaria na mesma medida de não estar. porque no fundo eu não quero de verdade. talvez eu queira mesmo é ter o convite, que lembrem de mim, que me chamem. para, aí sim, recusar com uma desculpa qualquer, dizendo "poxa, obrigada por me chamar, não vai dar, preciso fazer xpto coisa importante da vida adulta". assim, eu acho que dá para sustentar a fantasia de que a escolha da vida é sempre minha.
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talvez você goste do que eu gostei
✷ vlog da tasha e da tracie no youtube. adoro assistir a vitória dessas gêmeas, elas são as minhas divas do rap nacional.
✷ eu sou fissurada de curiosidade sobre a intimidade das pessoas. adoro ver caderninhos de anotação e tenho uma curiosidade secreta por armários de banheiro. nesse vídeo, uma youtuber sai às ruas de paris pedindo que as pessoas mostrem o que tem na bolsa delas. é um deleite – mas dá raiva em ver que as custas dos países colonizados toda parisiense tem um iphone e airpods de última geração.
✷ filme argentino recente, de 2023, os delinquentes é a história de um mano que rouba o banco em que trabalha, fazendo uma conta simples: se eu fosse ganhar meu saláriozinho até o fim da vida, quanto eu precisaria hoje para me aposentar? aí ele rouba o dinheiro necessário e o resto é um filme de 3 horas que me fez reavaliar a possibilidade de assaltar trabalhar para um banco, risos.
Muito bom seu texto. Super me encaixo. Tanto que escrevi um livro de 200 páginas sobre basicamente esse assunto. Se chama Reencontros - Em Busca do Eu Perdido (tem na Amazon), contando minha vida nômade com minhas golden retriever.
você é uma mina foda que inspira um monte de gente e nem sabe. Na próxima vez que se sentir rejeitada lembre-se disso.