moro onde não mora ninguém
morei em poucos lugares. mudei quem eu sou muitas vezes. ano que vem vou construir uma casa, mas ainda falta a cerca. algumas das casas por onde passei construíram alicerces profundos em mim. fundações com sapatas enormes de concreto e ferro.
a casa da prima keith tinha uma escada de caracol, interfone preso na parede, carpetes no segundo andar e sabonetes do snoopy em formato de casinha na janela do banheiro. a casa da tia nega tinha um sofá branco e duas cozinhas: uma para cozinhar comidas gordurosas, que mancham os azulejos e que seu colesterol e diabetes já não permitiam e outra para ficar ali, embelezando. quase tudo na casa da tia nega tinha esse intuito: embelezar.
a possibilidade de ter mais que o funcional.
a casa da raquel, minha amiga da infância, que era simples, mas singela e impecável. lembro do quarto dela, que não tinha paredes-divisórias e ficava entre a sala e um corredor curto, mas que cintia tinha pendurado um trilho de cortina no teto e estendido um pano que fingia ser parede. ela tinha mais privacidade que eu.
a possibilidade de criar saídas para limitações e o desejo retroativo de que tivessem pensado isso pra mim.
das coisas insuperáveis que existem na minha vida, uma delas é minha casa – escrevo no presente porque acho que as casas que a gente morou nunca deixam de ser nossas-casas. eu morei por 10 anos em cerca de 45 ou 50 metros quadrados. em um retângulo sem janelas laterais, abaixo do nível da rua, sem paredes que pudessem dividir os cômodos. isso significa que o fogão, o guarda-roupa, a máquina de lavar, o filtro d’água, a televisão, o sofá, minha cama, a cama dos meus pais, o berço da minha irmã, o tanque, tudo estava no mesmo ambiente apinhado. as únicas separações eram do banheiro e da garagem, onde o cachorro vivia.
a bagunça. as papeladas. o mofo. as baratas. a água da chuva que invadia a casa e apodrecia os pés dos móveis. o rato que entrou pela porta uma vez. o nóia que pulou o muro. meu pai bêbado. minha mãe no telefone. o cachorro com avc. a kombi enferrujada. o portão doado. tudo isso me asombra até hoje.
a possibilidade de pedir que me colocassem uma cortina para fingir uma parede, já que não havia tijolos. a impossibilidade de acreditar que eu merecia-podia pedir uma coisa assim para a minha mãe. meu pai bêbado.
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a casa do thiago, na aclimação, em um predinho baixo, de portão baixo e jardim bem aparado. seu apartamento de tacos desgastados, janelas venezianas de madeira, cds amontoados, louças escuras no banheiro – ainda bem – e um gringo que falava inglês e uma vez se hospedou lá, pelo couchsurfing, e inventou de lavar roupa no chuveiro.
a possibilidade de viver de maneira mais descomplicada e interessante.
a casa da thamise na lapa, depois a casa da bela vista. as raquetes presas na parede, intuindo que ela jogaria squash dez anos depois. bichinhos minúsculos vivendo em cantinhos mágicos, luzes bonitas filtradas por janelas sempre grandes – e/ou largas –, que deixavam as plantas felizes. um ergo rápido para o pêlo dos gatos.
a possibilidade de ter mais do que o funcional.
a casa do paulo, em pinheiros. um apartamento térreo, as luzes indiretas e amarelas. uma árvore no térreo. um monte de jovens de república no andar de cima.
a possibilidade de convidar gente pra dentro de casa.
a casa do luis e da thais, em mirandópolis. cobogós no quintal, um ateliê de marcenaria e pintura, uma roseira. o banheiro antigo, a escada mesminha igual à maioria das escadas dos anos 50. a possibilidade de viver em uma casa, fora de um condomínio, com um quintal.
a possibilidade de construir minha casa, batendo uns pregos.
as casas que eu vi pelas frestas das cortinas nas janelas de amsterdã.
as casas caindo aos pedaços em lisboa.
as platibandas da ilha do ferro.
a vila operária do octingentésimo número da rua com nome de almirante escocês. as casas todas iguais, singelas, capengas e adoráveis. o chão de ladrilho da época. o taco acumulando cera. a escada igualzinha do luis. as coisas tão suadas, conquistadas, trabalhadas. meu canto no mundo, que protege meus sonhos dos pesadelos de antes.
um terreno no sertão, ainda sem cercas, mas com um pé de jurema no meio, pra ver a força que os sonhos têm.
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diz a psicanálise que a casa representa o nosso interior, o nosso espaço psíquico e pessoal – o que quem entende do riscado chama de psiquê. a fachada da casa é a persona que a gente pinta e mostra ao mundo. o telhado é a nossa cabeça-consciência. dizem que é na cozinha que as grandes transformações acontecem, na alquimia dos ingredientes.
casas para visitar
casas e coisas é uma das exposições de longa duração do museu do ipiranga (venham visitar a província). o que o site do museu diz: essa exposição trata do espaço doméstico como lugar de formação do nosso modo de ser. apresenta objetos de trabalho e decoração de diferentes residências paulistas nos últimos 150 anos, como louças, utensílios de cozinha e objetos de escritório. a partir deles, somos convidados a refletir sobre seus usos, ornamentos e materiais. ao observar como os objetos se relacionam entre si e com as pessoas que os utilizam, podemos entender como ajudaram na construção de identidades individuais e sociais baseadas em diferenças de gênero.
se tem museu que expõe casa de gente comum, tem casa de gente importante que virou museu. a casa cor traz cinco casas de figuras públicas da elite intelectual e cultural de são paulo que viraram museus.
moro onde não mora ninguém, uma música do agepê, presente no acervo de discos dessa casa em que escrevo essas palavras.
“é lá onde moro que eu me sinto bem, não tem bloco na rua, não tem carnaval, mas não saio de lá.”
enfeitar é uma das minhas palavras favoritas da vida, amiga, e hoje você me deu essa explicação: a possibilidade de ter mais que o funcional.
sou apaixonada pelas suas casas (todas) <3
A casa mais bonita é o seu coração