história nas alagoas
um pedaço de chão na ilha do ferro é a elaboração do meu passado familiar
dos 3 aos 6 anos, minha tia quitéria me criou. numa casa no jardim inamar, em diadema, na periferia onde os nordestinos costumavam ocupar quando chegavam em são paulo. uma casa construída com o trabalho feito nas fábricas do ABC. uma casa de portão aberto, cheia de gente, com feijoada nas datas comemorativas, dominó na calçada, latas de cerveja antártica e meus primos dançando mastruz com leite.
quando fiz 6 anos, fui para a casa da minha avó porque precisava ser alfabetizada e a escola era mais perto. também porque meu avô tinha voltado pro garanhuns. miracica, sítio escovão é o nome certo do lugar. meu avô voltou e minha avó ficou. uma baiana que nunca tinha pisado em salvador. saiu de conceição do coité direto pra são bernardo. cuidou de mim dos 6 aos 14, numa casa construída com o trabalho nas fábricas do ABC e uma máquina de costura industrial dos anos 60.


eu cresci em uma contradição. de um lado, ouvia que a cidade de meu pai era uma terra seca, sem água e que era por isso que ele tinha passado fome. do outro, escutando os discos do fagner e entendendo que ele só podia mesmo ter nascido na cidade do meu pai. não tinha outro canto possível e era por isso que ele era genial.
aos 6 anos, eu sabia o que era uma cangalha, para quê servia, o que era um açude, para quê servia, qual o gosto do cuzcuz, que mandioca era macaxeira e que bolacha coquinho era boa feita com margarina na frigideira.
quando meu avô decidiu voltar para garanhuns, ninguém entendeu direito. depois de uma vida de trabalho braçal nas fábricas e na roça, depois de minha avó ter cansado a vista na máquina de costura e perdido um pedaço do dedo na prensa da metalúrgica, ele quis vender casa, chácara, carro e voltar pro sertão. vendeu tudo que tinha conquistado e nunca mais voltou pra são paulo.
morreu do coração, dizem. se tivesse ficado em são paulo, o socorro tinha chegado antes, dizem também. mas foi inventar de voltar.

ninguém entendia como é que podia alguém voltar pr’aquele lugar. minha tia nega, irmã de meu vô, arrumava as malas com o tio luiz e viaja sempre para miracica. eles tinham saudades das saudade das pessoas. nunca soube se tinham saudade do lugar, já que lugar bom é são paulo, que tem comida farta, trabalho, água e oportunidade de estudo.
não era uma possibilidade econômica para o meu avô ter uma vida que contemplasse o sertão e a cidade. era impossível viver viajando, visitando as pessoas ou mesmo passando uma temporada cá e outra lá. era um ou outro. era preciso escolher. era a cabeça ou o coração. era um pouco de cabeça e um pouco de coração perdidos pelos dois cantos. divididos entre o nordeste e o sudeste.
tudo isso eu suponho e fantasio, ninguém me contou.
quando fui pela segunda vez para a ilha do ferro, passei 11 dias lá e voltei dizendo para minha analista que tinha começado a entender um pouco mais desse encontro, um pouco mais da vontade de voltar. eu tinha entendido que ali, naquele povoado do sertão, eu conseguia ser quem eu realmente sou – embora, eu não saiba muito bem ou com muita certeza, mas me sentia à vontade para viver sem performar.
eu disse pra ela o que até agora me parece verdade: eu não preciso ser nada além de mim mesma. não preciso performar, falar coisas sobre meu trabalho ou comentar como aquele restaurante que abriu no bom retiro tem uma carta incrível de drinks. eu posso ser aquela criança na casa da tia quitéria, que joga dominó com os mais velhos e escuta atenta as histórias do passado.




ter um pedaço de terra para construir uma casa na ilha do ferro tem um sabor de elaboração desse passado familiar. ter a possibilidade de viver entre são paulo e o sertão, com conforto, na beira do rio são francisco e, sobretudo, por escolha, me faz acreditar que em algum cenário eu estou alegrando meu avô, meus tios, minhas avós, minhas tias. as pessoas que eu nem conheci. toda essa família que, por causa de um projeto político, foi tirada do seu lugar de direito. essa gente que migrou sem sapato, sem saber ler e escrever, mas que me deu a genética capaz de transpor o destino.
mesmo que eu tenha me encontrado comigo mesma em outro estado que não a bahia da minha avó, o ceará do meu pai, o pernambuco do meu avô e a paraíba da outra avó. mesmo assim, agora, a minha família vai ter história também nas alagoas, a partir de mim e do que eu construo agora.
axé!


Me identifico nas suas palavras e me emociona ver esse seu caminho! ❤️
essas infâncias construídas com o trabalho nas fábricas do ABC e uma máquina de costura industrial dos anos 60 <3