falta fantasia no carnaval de são paulo
parei para fazer as contas e notei que há pelo menos 10 anos, religiosamente, todos os anos, encaro o carnaval de rua de são paulo. uso o verbo “encarar” propositalmente. embora o carnaval seja uma festa para qualquer tipo pessoa, o meu tipo de carnaval-preferido envolve resistência física em níveis importantes. uma atividade cansativa e insalubre, de suor, mijo e bebida.
quando comecei a frequentar o carnaval (de são paulo), os mega-blocos ainda não existiam, as cervejas ainda não patrocinavam ninguém e o ifood ainda não distribuia viseiras pela cidade. meu aprendizado sobre como encarar – e sobreviver – foi se maturando ao passo que o carnaval de são paulo também se tornava a única coisa que as coisas podem se tornar nessa cidade: um jeito de ganhar dinheiro e construir mídia.
vendo as fotos pixeladas dos primeiros blocos que frequentei – jegue elétrico, tarado, pilantragi –, entendo que existiam duas formas de se vestir para o carnaval: 1) com fantasias temáticas daquelas feiosas e/ou estereotipadas, compradas em lojas da ladeira porto geral e 2) com o combo brusinha colorida, short curto, tênis all star, bolsinha de lado e glitter não-ecológico na cara.
nessa época, o que mais variava eram os adereços de cabeça e a maquiagem: a gente caprichava com um olhão, um batonzão vermelho e algumas coisinhas coladas na testa e nas bochechas. o que eu acho mais interessante de observar é que naquela época parecia que o improviso estava mais presente nas roupas e nas fantasias – mesmo que hoje as blogueiras – alguém ainda fala blogueira? – de carnaval continuem dizendo que fazer uma cabeça de lagosta é improvisar-tranquilinho-com-o-que-você-tem-em-casa.
em 2012 estar bonita era importante, pois: carnaval, mas não existia a expectativa ou a intenção de performar, sair nas fotos de perfis bombados do instagram. era um tempo-outro. uma internet-outra. e talvez a minha bolha também fosse de outras pessoas. a gente se ajeitava com o que tinha e/ou dava.
o carnaval de 2023
devo te contar que sou uma pessoa que adora se vestir, que se monta até para ir à academia ou à praia e que o carnaval, aos poucos, passou a ser mais uma desculpa para fazer o que eu adoro, em níveis mais exagerados.
no ano de 2023, eu inventei que meu carnaval teria um tema: músicas do caetano e do gil. cada dia eu sairia fantasiada de um título deles. com uma amiga da época, criamos algumas fantasias traduzidas livremente: um kimono de paetê em tons de azul era “gente” – é pra brilhar –, uma saia e top de fitinhas do bonfim era “toda menina baiana”, uma roupa prateada e um adereço de cabeça de lua e estrela era, ora ora ora, “lua e estrela”.
fato é que naqueles quatro dias de rua, não me senti parecida com ninguém. era um carnaval em abril, fora de época por conta da pandemia. meio feio, meio frio, meio chuvoso demais e completamente acinzentado. eu me senti meio deslocada, como se tivesse fora de moda entre as outras mulheres que vestiam maiôs cavados, meias arrastão, biquínis e penduricalhos.
tinha um abril melancólico no meu carnaval.
o carnaval de 2024
no ano passado, mais conhecido como o primeiro ano depois da pandemia em que o carnaval foi no período certo (fevereiro ou março), eu enlouqueci.
poderia dizer que enlouqueci no sábado de carnaval, pela mistura inconsequente e burra de muitos tipos de álcool e alguns ilícitos, mas a realidade é que eu comecei a enlouquecer em meados de janeiro e não foi de bebida, foi de ansiedade.
eu estava muito ansiosa pelo carnaval de 2024. os anos anteriores de clausura pandêmica tinham concentrado uma energia libidinosa gigante em mim. tudo que eu pensava era em quanto eu queria estar na rua, vestindo pouca roupa e me pendurando em postes fálicos.
no fim de dezembro, eu me concentrei no plano perfeito: fazer pastas de referência no pinterest e no instagram, com referências da moda, para abrir um barracão em casa e estar bonita e fotografável. o algoritmo se concentrou em me mandar mais e mais conteúdos de mulheres da minha idade fazendo cabeças de lagosta e outras coisas dificílimas para uma pessoa que é destra, porém parece dotada de duas mãos esquerdas.
nada é impossível se você se odeia o suficiente.
e foi aí que tudo saiu absolutamente do controle (spoiler: nada voltou ao controle ainda) e eu comecei a fritar. a achar que tudo ia dar errado, a queimar meus dedos com cola quente, ter dores na lombar de ficar agachada colando pom-pom, pedir aviamentos no mercado livre, pagar fretes, pedir mais coisas, pagar mais fretes, achar que nada ia chegar, sair correndo para a 25 de março, achar que nada ia prestar. será que o pacote da shein vai ser taxado, senhor? eu colapsei – e gastei mais dinheiro do que gostaria.
o close capitalista
em algum momento entre o último carnaval pré-pandêmico e o primeiro carnaval pós-pandêmico, o “look de bonita” tomou conta de tudo. era só no que se falava: como montar looks – não fantasias – com seu maiô, biquíni, meia arrastão, cores combinando, muitos cintos metálicos, cabeças gigantes, botas western pensadas cuidadosamente para não arruinar o look. nada de olympicus ou saias de tutu.
entendi que, para 2024, já não importavam mais as temáticas e conceitos, o que importava era estar bonita e fotografável ou, como são paulo fez com seu carnaval, arrumar maneiras de ganhar dinheiro e/ou construir mídia.
é assim que o monstrão do capitalismo atua: cria mega-blocos, assina contratos de patrocínios de cerveja, permite distribuição de viseiras de e.v.a., exclui com festas fechadas, comodifica as “fantasias” – atenção, muitas aspas – nas seções de carnaval ca c&a, renner, riachuelo. canais e mais canais de venda.
muito que bem, capitalismo, você venceu – e vendeu!
eu perdi duas unhas dos pés
não tem outro jeito de dizer isso: eu perdi as duas-unhas-dos-dois-dedões-dos-dois-pés no carnaval de 2024. a culpada disso? eu mesma, que achei uma boa ideia coordenar meu look-sem-tema-fantasia-de-bonita com uma bota chelsea branca – genial. queria marcar aqui a blogueira que trouxe referências de carnaval com botas chelsea.
como eu disse, o meu espírito carnavalesco inclui situações insalubres em muitos níveis. uma delas é sair de casa 8h e voltar 18h, sem sentar se quer um minuto, dançando e brincando o máximo que dá. isso parece um pouco incompatível com a minha vontade de calçar uma bota chelsea branca e tirar fotos em que eu não apareça derretida e sim a gata moderna do instagram.
confira as tendências para o carnaval 2025
eu sei que a culpa não é nossa, nem da menina do instagram. eu sei que a gente só quer uma foto com look de bonita. eu também quero! mas, vivo em constante contradição em como o carnaval de rua de são paulo já não me parece mais aquele evento de contracultura democrática e popular que eu experimentava no início da minha vida adulta.
não sei se, de fato, em 2010 as coisas eram realmente mais raiz, mas o fato é que eu não abria o globo e lia matérias sobre as tendências de carnaval ou era inundada de conteúdos de blogueiras falando que a moda agora são as pérolas.
coisas importantes
eu não tô falando de todos os carnavais, eu tô falando do carnaval que eu frequento: são paulo, classe média da franja vegana.
este ano eu também já gastei mais do que deveria com o carnaval.
o recorte de gênero atravessa tudo, homens estão sempre imunes.
gostei muito do texto e sinto que eu também sou pega pelo capitalismo carnavalesco mas na outra via: odeio gastar com o que não vou usar no resto do ano e passo o pré-carnaval me martirizando a respeito de comprar ou não comprar, o que compromete a fantasia da data (não a fantasia-roupa mas fantasia do brincar, do imaginar, do poder sair do personagem de sempre)