brincar me fez crescer
eu sou a primeira pessoa adulta da minha família que tem o privilégio de passar horas pintando de canetinha. não é fazendo costura, bordado, bolo, salgado para vender; é brincando.
aos 34 anos, comecei a pintar de canetinha uns bichinhos-humanizados em cenários-humanizados: ursos que usam botas, cozinham mingau e vão ao mercadinho da esquina. aos 23 anos, minha irmã ganhou de presente miniaturas de outros bichinhos-humanizados: ursos que vestem miniroupinhas de gente, vivem em seus minimundinhos, fazendo suas minicoisinhas.
eu já tinha tentado muitas coisas, algumas como estratégia de sobrevivência – ou redução de danos, como costumo dizer – e outras como parte das minhas inúmeras tentativas de me concentrar mais no que importa – e, spoiler: pouca coisa importa de verdade.
em algum momento da minha adaptação ao trabalho em home office, com uma rotina de nove, às vezes dez, reuniões ao dia, comprei um livreto de colorir com cenas de street style nova iorquino e uma caixa de lápis faber castell de 36 cores. enquanto CEOs e outros C-levels falavam em meus fones de ouvido, eu escolhia qual tom de azul usar para colorir um jeans destroyed. paz terrível.
era um tempo anterior às canetas touch, ohlulu e também ao tiktok. eu pintava coisas feias, anotava alguns pontos importantes para o meu trabalho e seguia para a próxima reunião. mais ou menos nessa época também, eu e mihail, maratonamos todos os episódios de mundo da lua, aquela série que passava na TV Cultura durante os anos 90.
quando eu era criança, além de assistir mundo da lua na TV, eu via muito o pequeno urso, um desenho animado sobre um urso que anda em duas patas, mora numa casa lindinha, tem um pai que é marinheiro e amigos como uma pata, uma galinha e um gato. fui uma criança solitária e uma tarde perfeita no meu minimundinho era formada por assistir mundo da lua e comer rosquinha de coco da panco, enfiando cada bolacha no dedo feito anéis.
já depois dos 30, numas duas ou três manhãs difíceis, levantei da cama para ir me exercitar. coloquei as roupas de lycra, amarrei os tênis, mas não me senti descansada e/ou disposta o suficiente para enfrentar o mundo. resolvi, com o livre arbítrio adquirido na idade adulta: deitar no sofá, me cobrir de cobertor e assistir pequeno urso até 8h30. fiz isso e fui feliz.
no feriado de páscoa deste ano, novamente em posse do meu livre arbítrio adquirido, passei 4 horas ininterruptas ouvindo música e obcecada com meu livreto de pintar, escolhendo cores, fazendo texturas de madeira, experimentando os tons que um facho de luz contém, imaginando a personalidade que o urso teria e qual deveria ser a estampa da sua mochila.
basicamente, passei 4 horas brincando.
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drauzio varella, em seu último roda viva, dizia que sua geração havia sido uma das mais privilegiadas a viver no mundo até agora porque as crianças daquela época foram as primeiras que tiveram o privilégio de viver a adolescência. ele explicava que esse conceito de adolescência é ultra moderno e que antes da geração dele não havia esse entendimento, as crianças simplesmente começavam a trabalhar e fim. não tinha nada entre primeira infância e o começo de uma vida de trabalho e exploração.
é claro que o doutor drauzio falava dentro de sua perspectiva, no seu recorte social e racial, mas é bem impressionante pensar no impacto que ter uma fase da vida com algum tempo disponível para, sei lá, ser adolescente – com a amplitude do que isso significa –, pode ter na vida das pessoas.
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em análise, já falei bastante sobre as minhas ocupações-sem-fins-lucrativos. falo sobre a corrida, o terreiro, a escrita nos meus cadernos, as colagens e, agora, comecei a falar com certo deboche sobre essas coisas de pintar bichinhos. eu dizia "imagina, nicole, que agora eu sou uma mulher de 34 anos que compra canetinhas coloridas e passa horas pintando ursinhos, como se eu estivesse brincando".
e, na hora em que calei a boca, tive o insight: eu sou a primeira pessoa adulta da minha família que tem o privilégio de passar horas pintando de canetinha. não é fazendo costura, bordado, bolo, salgado para vender; é brincando.
falo – como o doutor drauzio – dentro da minha perspectiva, no meu recorte social e racial. talvez essa minha geração, dos ditos millenials, seja realmente a primeira geração que pode brincar na vida adulta, que pode dedicar espaço, tempo e algum dinheiro para se ocupar de brincadeiras sem abrir mão de muito.
a ascensão social e o privilégio de escolher quando e se quero gerar e ter filhos. o privilégio de ter uma carreira que, apesar de exploratória, me deixa algumas horas livres. o privilégio de não precisar (mais) escolher entre comer bem ou me divertir. esses privilégios todos, tudo isso me proporciona ter uma vida adulta lúdica.
dizem os pedagogos, que é brincando que a criança aprende e, bem dizer, cresce. eu suponho que seja assim que qualquer pessoa continue aprendendo e bem dizer, crescendo. costumo dizer que não levanto da cama se não for para me divertir, não arrumo solução de problema se não for na via da leveza e do bom humor – mesmo que trágico, pessimista e melancólico, como todo humor que é bom.
brincar o carnaval me fortalece pro baque do ano. pintar bichinhos me afrouxa os nós. escrever me ajuda a me vingar dos meus traumas. correr me traz ideias novas. girar no terreiro me encanta de possibilidades para além do tocável.
me meço no batente da porta e constato: brincar me fez crescer.
Que lindeza de texto!
eu lendo isso após ficar horas fazendo cerâmica fria (que nada mais é do que brincar de massinha) ontem <3