a segunda decisão mais difícil
sempre mantive esse tema em meus cadernos. agora sinto que é momento de tomar a segunda decisão mais difícil: publicar.
foi depois que fiquei adulta. não, recomeço: foi depois que fiz 30 anos. não. não tenho certeza. talvez depois da pandemia. talvez as três coisas juntas.
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essa semana, reli cadernos em que eu praticava journaling a escrita à mão sobre qualquer coisa, meio em tom de diário. reli também algumas notas perdidas no monte de lixo eletrônico do icloud, coisas que eu escrevia quando andava de metrô ou estava assistindo insecure, na hbo. em uma delas, do início de 2020, eu dizia a mim mesma que há 10 meses vinha me sentindo mal. o motivo, desde então e vez ou outra, volta à superfície do meu consciente sempre em forma de palavra: encontrei quase uma dezena de outros escritos sobre o tema. sempre mantive tudo isso nos meus cadernos, nas notas salvas na nuvem, nos ditos das sessões de análise. agora sinto que é momento de tomar a segunda decisão mais difícil: publicar.
há cinco anos, em 2020, eu tomei a primeira decisão difícil: terminar o relacionamento que eu tinha com um grupo de amigas desde meus 20 anos.
acho que nunca me recuperei muito bem disso.
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na primeira parte da minha vida adulta eu fui a pessoa que sempre partiu das amizades sem deixar bilhete. sempre inventei que ia atender o celular no meio de uma festa e nunca mais voltei. parte, por inabilidade em traduzir sentimentos em palavras. parte, por preguiça dos sentimentos alheios. parte, por não me importar verdadeiramente com os sentimentos alheios e/ou com o que as pessoas pudessem pensar de mim. posso dizer com absoluta certeza que até os 24 anos não fui alguém que teve responsabilidade afetiva, principalmente no que diz respeito a amizades. é horrível e eu reconheço.
os amigos da rua que eu cresci ficaram pelo caminho quando meu mundo se tornou maior que o bairro. os amigos da escola terminaram o ensino médio e ficaram nos empregos que a cidade oferecia, enquanto eu queria trabalhar em são paulo. outro punhado de gente, da faculdade de jornalismo, não tinha a menor ideia do que era design nos idos de 2012 e pirava muito em redações com salários horrorosos. outros amigos assumidamente votaram no aécio e, depois, apoiaram o golpe.
a culpa não é minha, eu votei na dilma. é minha também, eu sei. repito em voz alta para não cair na armadilha narcisista de acreditar que me afastei-fugi-sumi porque tenho o mundo tão-galera, tão maior, mais interessante, mais bonito e progressista do que têm os amigos que ficaram pelo caminho.
talvez eu é que tenha ficado pelo caminho como sempre fui: ensimesmada com as minhas crenças.
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historicamente, fiz amizades tal qual qualquer pessoa que nasceu em 91 faria. primeiro, nos lugares em que me obrigavam estar: escola, cataquese, crisma. depois, nos lugares em que escolhi estar: cursos de fotografia, inglês, bar faculdade de jornalismo. por fim, onde sou obrigada a frequentar pelos próximos cinquenta anos: trabalho em horário comercial.
deixando os acasos criados pelas obrigações de lado, me parece que antes bastava o dia a dia num mesmo espaço físico para manter um laço de amizade. hoje, não mais. agora já me interessam os limites, os votos, as crenças, as manutenções.
eu nunca mais ter esbarrado, especificamente, com uma dessas pessoas que ficaram pelo caminho – entenda a medida de nunca-mais como os últimos cinco anos – me prova que a gente não tinha mesmo muito a ver uma com a outra. e ainda bem.
mas a verdade é que as amizades são frágeis e a maioria não é construída para durar para sempre. poucas resistem ao tempo, à geografia e à política.
– tamires correia, em amizades que acabam.
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há um desejo primitivo que é grupal. há um desejo infantil – meu – também de ter uma turma de amigos, com quem estar no recreio, com quem matar aula. com quem compartilhar uma mesma cultura, socializar uma mesma bebida.
tenho (tenho?) um grupinho novo de pessoas com as quais me relacionei presencialmente uma vez na semana, durante algumas semanas dos últimos meses. ainda que sem grande intimidade, pessoas com as quais me relacionei e que agora tenho um grupo no whatsapp (!).
eu me senti contente com isso, infantilmente contente.
algo como a satisfação de não estar mais sozinha no recreio – não todos os dias, pelo menos – é suficiente para melhorar minha autoestima, mas não tão suficiente para me deixar segura. cresci me sentindo avaliada pelas pessoas e não é tão diferente agora: converso com essas mulheres inteligentes, talentosíssimas, lindas e das quais quero ser mais-amiga, amiga-mesmo, pensando sempre que estão me avaliando.
quando terminei o relacionamento com o grupo de amigas dos meus 20 anos, foi como deixar uma festa que já não estava legal. eu vinha arrastando sentimentos ruins. não me sentia ouvida. não me sentia apoiada. elas têm as versões delas e eu ouvi as versões de quem quis falar comigo. nessas versões, eu sou a vilã.
hoje, sempre que envio uma mensagem no whatsapp de qualquer grupo de amigas, me pergunto: quando é que elas descobrem que não sou suficientemente legal? sou antipática, chata, ranzinza, egoísta, que tenho opiniões duvidosas e ainda sou a culpada pela derrota do boulos, já que votei em são bernardo e não transferi meu título? será que elas já estão notando? será que eu acabei de falar uma bobagem muito grande e a partir desse momento fico sozinha pra sempre?
aí me dou conta de que, apesar de ter feito amigos em vários lugares e enfiado 50 pessoas na minha casa quando completei 21 anos, eu sempre me senti sozinha e, talvez por isso não tenha sido lá uma amiga tão exemplar nos fins de amizade.
a verdade é que eu nunca consegui fazer parte do grupo exato em que eu queria estar. ora me sentindo muito burra para esses intelectuais das palestras da boitempo. ora muito normativa para as pessoas que andavam de skate e fumavam gudang na escola. ora muito mainstream para esse pessoal que lê mutarelli. ora muito magra para realmente ter músculos aparentes.
sempre neurótica obsessiva. um cid para chamar de meu. não vou soltar. de onde eu vim, dava pra ser muito mais doida.
ainda não consegui superar o medo de me envolver com amizades tão profundas novamente. sinto como se eu tivesse saído de um relacionamento romântico tóxico e não conseguisse mais se quer estar em um date. como se me envolver em uma amizade profunda fosse me colocar sob o risco de sofrer novamente.
há cinco anos não consigo aceitar um café, uma cerveja, uma voltinha ali no centro de são paulo. fico no eterno vamos-marcar-claro-como-tá-sua-agenda-no-último-final-de-semana-do-mês?
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eu sei, hoje eu sei (não sei?), que terminar o relacionamento com aquelas amigas foi importante. falar o que eu sentia foi importante. escutar e ler o que duas delas sentiam foi importante. apesar de nenhuma de nós quatro sermos capazes de entender as outras por completo. apesar de vez ou outra pensar que poderia ter sido diferente. foi melhor eu me despedir antes de ir embora da festa ao invés de inventar que ia atender o celular. foi menos covarde. foi mais honesto com a nossa história, que teve muitos momentos bonitos.
lidar com a possibilidade de assumir o papel de vilã na história das pessoas é um exercício de humildade. outro dos exercícios que esse término me trouxe é constantemente lembrar que existem outras pessoas no mundo, com outras histórias e que nem todas vão me ver como uma pessoa horrível. a gente não é uma coisa só.
outras amizades
amizades que acabam, texto super pessoal da tamires correia. li há alguns meses e me deu um pouco mais de coragem de escrever assumidamente sobre esse assunto. obrigada, tami!
posso te mandar um aúdio?, aúdio da bárbara bom angelo sobre a dificuldade de marcar-e-ir a encontros com pessoas que admiramos e que queremos ser amigas (eu tenho pelo menos meia dúzia de pessoas assim), ela conta como superou isso. espero fazer o mesmo este ano.🤞🏼
tambem vivo algo parecido e é muito ruim isso tudo. espero que nossas vidas se organizem mais afetivamente! um abraco
Que delícia de texto! Muito bom poder compartilhar esse sentimento e sentir menos sozinha, ainda que o sentimento seja ruim rs'
Passo pelo mesmo, do seu texto e do da Tamires - até hoje sem saber como lidar com amizades que morreram desde antes da pandemia, e da falta de onde colocar essa necessidade humana desde então.
Acho que fiquei, em outra direção, MAIS apegada aos meus amigos que ainda tenho, e qualquer relação de amizade parece que tem que suprir tudo - ao invés de ter medo de me entregar, quero apegar demais?
Tenho refletido muito em como procurar esses novos grupos, que façam sentido mas que também possam existir sem essa pressão de ser -o- nosso grupo de amizades. Também não tenho respostas rs'
Fica aí meu desejo que essas dores possam começar a ser curadas, pra gente e na nossa sociedade, em breve ♥