à boca
o corpo adoece. a mente adoece. adoecem os rios e as trincheiras. as ideias e a cabeça. adoece o mangue, os joelhos, a célula maligna do tempo. nada é perene. as coisas todas padecem. a fruta apodrece. a água das flores fede se muito tempo parada. o ralo, ainda que seco, arrota fedor. o cano entope.
o esgoto volta à boca de lobo. o refluxo volta à boca do homem. o aterro chega à boca da mata. um nó na boca do estômago.
material orgânico. tudo nasce pra feder um dia. fede depois de morrer. tudo que não presta mais pra nada fede: merda, cadáver, suor, urina. peso morto. não há gente sintética. e já te aviso de antemão: ninguém vai sobreviver. à miséria do governo. à fome nas pessoas. aos tanques nas ruas. à catástrofe climática. ao mercado fonográfico e ao uso de autotune nas músicas.
sobreviver e ser capaz, ainda, de continuar viva e vivendo. com cultura e cultivo. existir de um jeito novo. outro. mais junto. mas nenhuma boca vai sobreviver pra contar a essa história.
| lampejo escrito na antesala do hospital são luiz, enquanto esperava para fazer um teste de covid – que deu negativo.