#02
meu pai sempre esteve correndo e eu nunca consegui alcançar os passos dele. uma maratona de 60 anos inconsequentes que, ao invés de isotônico, foi hidratada com cachaça. ele tinha que correr até um abrigo. ele nunca teve nada que o impedisse de sempre correr pra longe. da fome. da miséria. vermes no bucho. depressão. correr rápido do pensamento que, viciado como ele, insistia em inferiorizar cada detalhe dessa história. chapéu de trouxa é marreta. tênis de pobre é correr descalço, mas o couro da sola dele é grosso. opaco. meu pai sempre esteve correndo e corre até hoje. mesmo manco de uma perna. mesmo depois de vinte dias nas luzes brancas da UTI. mesmo indo cada vez mais longe de todo mundo. mesmo esticando o afeto até arrebentar a corda das lembranças. mesmo levantando poeira. mesmo que o fígado não aguente mais nenhum gole e que a vesícula já tenha derramado. ele continua. morrendo.